Entrevista concedida a Virgínia Codá e Vinícius Estrela, componentes da equipe da revista de Biologia Cultural A Bruxa, organizada pelos educadores Elidiomar Ribeiro (UNIRIO) e pela Luci Coelho (UFRJ), do Laboratório de entomologia urbana e cultural da Unirio. O zine Homem-Leoa foi lançado no Mercado Fundição Sustentável, na Fundição Progresso/RJ dia 1 de fevereiro de 2020.
Capa do zine
Zines impressos
Leia o texto de apresentação postado pelo prof Elidiomar:
Com muita felicidade, temos em Homem-Leoa #02 uma entrevista muito legal com a bióloga, fanzineira, desenhista e escritora Danielle Barros, a quem agradecemos. A Dra. Danielle é professora adjunta em dedicação exclusiva da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC), Campus Paulo Freire, em Teixeira de Freitas, Bahia. É doutora em Ciências na área de Ensino de Biociências e Saúde no Instituto Oswaldo Cruz (IOC/FIOCRUZ), mestre em Ciências no Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT/FIOCRUZ) e licenciada em Ciências com habilitação em Biologia na Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Coordena o "Projeto CiArtE: Ciência, Arte & Ensino" na UFSB. Suas áreas de atuação são: ensino de ciências, práticas pedagógicas, metodologias ativas e formação de professores de Ciências.
Divulgação da entrevista na página do fanzine Homem-Leoa no facebook
Páginas da entrevista no zine
No fanzine, por uma questão de espaço, a entrevista com a Dra. Danielle está resumida, mas aqui na página está na íntegra. Os entrevistadores foram Virgínia Codá e Vinícius Estrela.
Segue a entrevista:
Como
você acha que a arte se relaciona com a ciência?
Tenho
grande afinidade com este tema e tangenciei essa discussão em minha
tese de doutorado, porém vou tentar ser breve!
A
interface entre Arte e Ciência ao longo da história da humanidade
nos mostra que esses temas eram concebidos de forma simbiótica.
Grandes cientistas como Galileu Galilei e Leonardo da Vinci,
transitavam pelas vias de conexão entre a ciência e a arte ao
desenvolver o conhecimento e comunicá-lo das mais diferentes formas
(pintura, música, escultura, desenho, poesia, etc.), deixando
legados inestimáveis à humanidade.
Infelizmente,
a noção de que a ciência e a arte fazem parte de campos
antagônicos permeia a cultura das sociedades contemporâneas
ocidentais. Essa ideia de separação é nomeada de “duas culturas”
por Snow, e podemos constatar isso pelo distanciamento progressivo
entre intelectuais das ciências naturais e das ciências humanas em
virtude da crescente especialização disciplinar, que estaria
provocando um empobrecimento do potencial intuitivo desses
cientistas. Há também, uma visão equivocada e estereotipada de que
o cérebro do cientista é somente racional e linear, e que os
artistas são apenas “intuitivos” sem se pautar em
racionalidades.
Mas
sabe aqueles/as grandes artistas ou cientistas que conseguiram
mudanças de paradigmas e que moveram o curso da arte ou da ciência?
Eles/as não se baseavam apenas em intuição ou racionalidade, mas
usaram suas qualidades racionais e emotivas para disseminarem seus
manifestos e fundamentar suas teorias.
Lamentavelmente,
essa crença de que o artista não utiliza sua racionalidade e apenas
utiliza da “intuição” em uma conotação de “improviso”,
como se lhe faltasse técnica, estudos e métodos, muitas vezes
relega a arte a um status “inferior”, sobretudo no âmbito
acadêmico por uma suposta falta de rigor metodológico.
Portanto,
reitero que não há uma separação estanque/cartesiana entre razão
(racionalidade) e emoção (intuição), uma vez que, ao longo de um
processo de trabalho criativo existe uma dinâmica de trocas
simultâneas entre o intuitivo e o racional.
Por
fim, assim como Root-Bernstein e colaboradores destacam no manifesto
ArtScience, publicado em 2011: “quem pratica ArtScience é artista
e cientista em simultâneo bem como as criações, que envolvem,
transcendem e integram todas as disciplinas e formas de
conhecimento”, sinto-me como artecientista, uma vez que minha
experiência humana envolve todos os aspectos da vida pessoal,
espiritual, acadêmica, artística, nessa minha descoberta na arte.
Ciência é arte e arte é vida. Não há separação.
Como
você costuma relacionar a ciência com a arte sem perder o conteúdo
científico?
Na
verdade não consigo ver uma coisa separada da outra, conforme
comentei em minha resposta anterior! Vai depender de cada educador/a
avaliar em que medida sua abordagem científica/artística vai se
aprofundar em relação ao conteúdo científico. Tenho usado
inclusive, o processo criativo como um processo AVALIATIVO, na
perspectiva das metodologias ativas de ensino. Ou seja, avalio os/as
discentes em seus processos de criação, onde elaboro um barema em
que vou avaliando cada ponto específico que julgo pertinente
(envolvendo tanto aspectos conceituais, quando a capacidade de propor
soluções, de trabalhar em equipe, de apresentar-se oralmente, de
escrita, etc.), no lugar de provas e testes memorizantes, e tenho
avaliado de forma satisfatória. Prova disso é constatar
o feedback dos/as alunos/as e os desdobramentos dos
trabalhos realizados em sala que tem gerado frutos como: criações
de fanzines, quadrinhos, jogos didáticos sobre ciências e essas
criações tem se tornado apresentações de trabalhos em eventos
acadêmicos e manuscritos para publicação! Fico tão orgulhosa de
ver tanta coisa linda e valiosa que eles/as criam!
Que
diferenças você notou nos seus alunos após começar a utilizar
fanzines nas aulas?
Conforme
os próprios relatos deles/as, destaco sobretudo: ampliação da auto
estima, pois ao se perceberem criadores/as, muitos se surpreenderam
positivamente com os resultados criados; a ampliação da capacidade
de auto expressão; a motivação de utilizar fanzines e quadrinhos
em sua própria atuação docente; constatar que é possível
aprender e fazer ciência com arte; e o prazer, inclusive para a
saúde mental, de poder criar durante as aulas no âmbito científico
e essa criação ser legitimada no processo avaliativo. Notei também
mais alegria e leveza no ambiente acadêmico!
Você
acredita que a criação dessas histórias auxilia para a preservação
da natureza?
Creio
que tudo que é criado nos vincula à criação. O artista e
pesquisador Edgar Franco (Ciberpajé) tem uma visão sobre isso que
eu concordo e cito aqui. Ele diz que muito dificilmente um criador de
mundos ficcionais irá promover a guerra porque quando você cria um
mundo, uma cosmogonia, você tem que usar empatia, tem que colocar-se
no lugar do outro, pensar como ele poderia estar pensando naquela
situação, e isso nos torna menos dogmáticos, mais receptivos à
visão de mundo dos outros, mais solidários, menos autocentrados e
egocêntricos. Ele conta que quando criou sua trilogia em quadrinhos
BioCyberDrama, roteirizada por ele e desenhada por Mozart Couto,
criou mais de 100 personagens onde teve que imaginar cada um deles, a
visão deles dentro da situação que experienciavam, como se
portariam segundo seu histórico de vida, suas personalidades, sua
forma física, e portanto teve que vivenciar esses quase 100 papéis,
sendo um pouco de todos eles. Franco diz ainda que a cada nova
criação ele se sente mais tolerante, menos presunçoso para com as
pessoas em geral, sua empatia cresce no mundo real na
medida em que surgem novas personagens em seu mundo ficcional.
Então,
pegando esse exemplo, se proponho aos/as discentes criarem histórias
sobre nossa fauna e flora, eles terão que pesquisar referências
anatômicas para desenhar, ou referências sobre ecologia, etologia,
habitat etc. para ambientar suas narrativas, e com isso vão
descobrindo peculiaridades, curiosidades, belezas, riquezas... Também
possivelmente descobrirão que aquele animal em específico está na
lista das espécies em extinção, ou já estão extintos, e talvez
isso possa fazer emergir dentro de cada um o sentimento de
engajamento, indignação, e força para proteger e preservar, para
divulgar sua importância, biodiversidade, etc., são muitas as
possibilidades de vínculo e aquisição de conhecimento!
Dessa
forma, o processo criativo de quadrinhos e fanzines, unindo ciência
e arte, constitui-se uma possibilidade de desenvolver, de forma
conjunta, uma via em que a aprendizagem é apropriada com um
significado, através da experiência. É notório: as aulas, as
oficinas de HQs e zines são muito prazerosas! As pessoas juntas
recortando, colando, desenhando, pesquisando, criando, superando seus
limites (em geral, auto impostos), descobrindo-se artistas de novo
(sim, porque sempre fomos, sobretudo quando crianças) e
percebendo-se fazendo ciência com arte, é lindo! Ao longo desses
anos desenvolvendo oficinas criativas e aulas com ciência e arte, e
de acordo com as avaliações dos/as discentes, - com alguns relatos
emocionantes-, posso dizer que realmente é transformador!
Para
finalizar, Franco ainda sugere aos educadores a implementação de
uma disciplina obrigatória chamada “Criação de Mundos
Ficcionais” que deveria ser ensinada em todas as séries dos
ensinos fundamental e médio (e eu diria no superior também), para
ele essa disciplina seria tão importante quanto matemática e
português, e eu concordo!
Se
eu acredito que a criação dessas histórias auxilia para a
preservação da natureza? Sim, pois aquilo que conhecemos,
preservamos! Precisamos reaproximar e reconectar o ser humano ao
mundo natural, do qual somos parte! Afinal “preservar a natureza”
é preservar nós mesmos! O planeta não precisa “ser salvo”, -
de acordo com a hipótese de Gaia, proposta pelos grandes cientistas
Margulis e Lovelock, - a Terra sempre se regenera em homeostase, nós
é que precisamos nos salvar de nossas próprias ações predatórias.
Por
fim, quando pensamos que o processo criativo pode nos curar, (como
sugere o nome de um fanzine meu “Criar Cura”), deduz-se que seres
curados não destroem (nem aos outros nem a si mesmo), então penso
que a arte poderia salvar a vida sim.
Como
você começou a se envolver com divulgação científica?
Creio
que desde sempre! Divulgação científica se dá por diversas
formas, sobretudo nos espaços não formais, informais, ou seja, em
uma simples conversa despretensiosa sobre um filme, uma série, uma
notícia sobre algum tema ligado a ciência, tecnologia, sociedade já
é uma forma de divulgar e falar sobre ciência!
Todos
nós podemos ser divulgadores científicos, sobretudo, pesquisadores!
O ato de pesquisar inicia-se no ato de PERGUNTAR, a partir daí é
preciso buscar respostas. Parece fácil tendo o Google e outros
mecanismos de buscas atuais, porém como estamos na era da
hiperinformação, é importante destacar que nem toda informação é
correta, relevante e de qualidade. Então o desafio atual é saber
como e onde pesquisar, sobretudo em meio a tantas notícias falsas.
Talvez
a falta da divulgação científica seja um dos principais fatores
dessa crise que a universidade vive hoje, na qual a população não
compreende nem reconhece o valor da ciência e da universidade para a
sociedade.
A
divulgação científica é um tema que eu amo, e a meu ver é o
dever de todo/a cientista tornar acessível o conhecimento científico
para a população! De forma geral, minha inserção na divulgação
científica se fortaleceu com os quadrinhos e os fanzines científicos
e agora está se ampliando com a criação de jogos didáticos,
podcasts, HQforismos, arte botânica, ações de educação
ambiental, materiais educativos diversos e zines cartoneros.
Continuarei
buscando compreender os processos criativos dos cientistas e os
processos científicos dos artistas, concebendo a complexidade de
ser, e entendendo a arte e a ciência como complementares em suas
lógicas, assim como são indissociáveis as dimensões da saúde, da
comunicação, e da educação no exercício da cidadania. São essas
inquietações e a curiosidade para com o mundo e os multiversos que
motivam meus estudos e minha vida.
Agradeço
pela oportunidade de poder refletir sobre minhas práticas e falar um
pouco dessas reflexões nessa entrevista tão agradável! É uma
honra estar nesse zine!
Drª
Danielle Barros é professora adjunta em dedicação exclusiva
da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) no Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências (IHAC), Campus Paulo
Freire em Teixeira de Freitas-BA. Doutora em Ciências na área
de Ensino de Biociências e Saúde no Instituto Oswaldo Cruz
(IOC/Fiocruz), mestre em Ciências no Instituto de Comunicação e
Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT/Fiocruz) e
graduada em Licenciatura de Ciências com habilitação em Biologia
na Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Coordenadora do
Projeto CiArtE: Ciência, Arte & Ensino na Universidade
Federal do Sul da Bahia (UFSB). Área de atuação: ensino de
ciências, práticas pedagógicas, metodologias ativas e formação
de professores de ciências.
Contatos:
Blog
“A Arte da IV Sacerdotisa”: https://ivsacerdotisa.blogspot.com/
Instagram: @projetociarte
E-mail:
danielle.fortuna@ufsb.edu.br
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